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Ares-condicionados

DEMÉTRIO PANAROTTO
120 páginas, 2015
1a. reimpressão, 2021
ISBN 978-85-60716-14-2
Apresentação de Cristiano Moreira

Demétrio Panarotto é professor universitário (UNISUL, Palhoça), documentarista, roteirista, músico (banda Repolho e duo Irmãos Panarotto) e idealizador do programa Quinta Maldita (webrádio Desterro Cultural). Doutor em Teoria Literária pela UFSC, publicou o ensaio “Qual sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé” (Lumme Editor/Móbile, 2009) e os livros de poemas “Borboletas e abacates” (Argos, 2000), “Mas é isso, um acontecimento” (Editora da Casa, 2008), “15’39’’” (Editora da Casa/Alpendre, 2010), "No Puteiro" (Butecanis Editora Cabocla, 2016); 'Café com Boceta' (Butecanis, 2017) e 'Blasfêmia' (Butecanis, 2018); o conto "Poema da Maria 3D"(Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book); e o livro infantil "A de Antônia" (Miríade,  2016).

 

Vive em Florianópolis, Santa Catarina.   

Um conto de Ares-condicionados

DESBRAVADORES

       Pra mandar embora quem eles não queriam, quem não se comportava sob os seus veredictos, mandos e desmandos, eles, os novos donos daquele pedaço de terra, abonados pelo direito da propriedade, agiam do modo que lhes convinha: amarravam um saco de estopa num fio de nylon e amarravam a outra ponta do fio no pezinho de um anu preto; em noite de lua de pouca luz, colocavam fogo na estopa e soltavam o bicho que dava rasantes de medo nas lavouras do vilarejo.

               A imagem era linda: uma bola de fogo cortando os céus.

              Se a estopa fosse de qualidade dava ainda mais brilho a cena. Parecia até cinema. Mesmo que eles não conhecessem cinema.

              O por trás da imagem é que era o dolorido.

          Por alguns momentos, a imagem é linda, mas nem sempre faz bem conhecer o grau de crueldade que a denota.

              Mesmo quando feia.

       Os moradores, os que se criaram a partir da lógica do fio do bigode, supersticiosos, assustavam-se e compravam a ideia de que não podia ser coisa boa. E não era. Era, sim, em função do que estava em jogo, muito mais cruel do que se podia imaginar. E os que ali moravam abandonavam o local. Davam a terra de graça. Davam de graça pois haviam ganho de graça. Terra era o que não faltava. Assim pensavam, assim viviam.

             E os donos da cidade – donos, pois tinham a chancela da colonizadora –, na ingenuidade dos outros, foram construindo cidades e sepultando o corpo cansado no lado escuro da história. Os mesmos que ergueram também sepultaram e depois foram sepultados. Haja vela de sete dias. E rezas. Haja rezas.

               Pergunto: qual é a fileira que determina as almas boas do Cemitério?

            Na fotografia de hoje, uma praça, uma igreja, o poder público, e um mundaréu de gente acomodada ao redor, sem muitas vezes se dar conta. Gente circunda o passado, somente isso. Gente que não acaba mais. É tanta gente que do miolo mole da cidade não se vê mais o fim dela como se via um tempo atrás.

              Na cerca de uma das casas, das poucas que ainda restam como as de antes, o anu preto, sempre em minoria, hoje não simboliza nada. Dizem que é bicho que carrega doença. Dizem.

Não tem a beleza de uma gralha azul, nem o colorido do urubu-rei ou da arara, nem carrega o agouro de um corvo. É um bicho meio sem graça. Sim, se dependesse de sua graça não sobreviveria. No entanto, hoje vive melhor sem os sacos de estopas que, embebidos em querosene e atochados de fogo, o perseguiam.

               Os bichos seguem ali, alimentando o passado. O passado se transforma em eco e sempre retorna. Nem sempre com a mesma roupa, mas ele retorna. Na memória e no esquecimento. E os fantasmas?, pois bem, como alguém me perguntou pelos fantasmas, só posso dizer que não há cidades sem fantasmas.

                Oi.

     

      

INTERMÍDIA

"Todas as canções de que ela gostava", de Luciano Zanatta (RS),

da Mansarda Records, denomina suas composições com trechos

 de contos do livro "Ares condicionados":  

 

1 todas as canções de que ela gostava

2 as canções (não é ficção)

3 as ruas hoje amanheceram manchadas de sangue coagulado
4 um oásis, um deserto, um sertão, ou algo que seja verde
5 não há cidades nem textos sem fantasmas
6 nos arredores da universidade caminhando em busca de vida encontrou mais farmácias do que livrarias
7 esta história aconteceu ontem

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mansardarecords[]gmail.com

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